Nova Ordem Mundial Revisado - Trecho 01 - Prelúdio

[páginas 4-9]
Prólogo: Processando


Dia 1 - 
Instalação #417

Enquanto os soldados o levavam ao seu destino, o primeiro pensamento de Frank Burlingame é que a Tecnocracia precisa parar de adotar esses ​clichês de ficção científica manjados.


Eles o amarraram e imobilizaram, de alguma forma flutuando junto deles através de corredores cromados, uma suave luz azul emanando do espaçamento entre os painéis. Nenhuma janela ou odor no ar perfeitamente esterilizado.

Ele não consegue identificar a causa de sua paralisia — sequer consegue virar a cabeça — mas seu sentido místico não possui tais restrições. Ele sente um vazio na tecelagem e no fluxo da Essência Primordial, como se a magia que inunda toda a Criação estivesse simples e impossivelmente ausente, e se permite um sorriso.

Eles precisam de uma prisão feita de Primium para me conter. Pelo menos estão me dando o devido respeito.

O seu percurso termina em um pequeno quarto sem janelas, com uma única cadeira adornada com tubos e agulhas. Os soldados o colocam nela sem cerimônias e saem. Ele ouve o surto de maquinário em movimento, sente algo perfurá-lo, apesar não haver dor acompanhando.

Estou drogado? Eles já estão na minha mente? Como poderiam, através do Primium?

Sua respiração dispara com a injeção de uma descarga de adrenalina. Ele fecha os olhos, desejando que aquela sensação volte.

Não. Eles não testemunharão meu medo.


Ele começa um exercício de meditação que Eiko lhe ensinara — mas logo lembra-se como ela morreu, dos seus pedaços carbonizados em pleno calor escaldante do sol brasileiro.

Como se fosse sincronizado com a recordação, uma luz ofuscante inunda o quarto. Frank ouve passos se aproximando e a silhueta de um homem interrompe à luz. Impossibilitado de discernir as feições. Claro, eles tinham que armar as coisas desta forma.

"Olá", diz a figura. "Quanto mais rápido cooperar, mais fácil será." Havia algo familiar na voz, mas a reverberação aqui faz com que seja difícil de identificar. Um velho inimigo? Ele deve ter uma alta pontuação entre as grandes divisões da elite atuais da Tecnocracia. Ele imagina um alvo de dardos com a sua cara, pendurado numa parede em alguma sala de descanso.

"Sério?" Frank pergunta, fazendo pouco caso. "Meu Deus, seu pessoal precisa melhorar os bordões".

A figura inclina a cabeça, Frank contém o sorriso. Ponto para mim.

"Eu não estou certo se entendi," diz a figura num tom de voz enfadonho e monótono.

"Claro que não. É esse o problema com vocês. Com todo seu conhecimento, vocês não entendem nada."

A figura cruza os braços, uma pequena mudança sua silhueta contra luz. "Talvez você possa me educar."

"Claro. O ambiente suave, todo metálico tem sido usado exaustivamente até à morte. Eu poderia lhe citar uns 10 filmes e videogames iguais. Isso não se parece mais imponente ou ameaçador, apenas indica que seu decorador de interiores faleceu quando o Futurismo ainda estava em voga".

Frank faz uma pausa, esperando uma resposta. Nada. Pelo menos esse cara aprendeu algo na escola dos Tiras Maus, seja lá quem ele for.

Frank prossegue. "E essa sala? O refletor? Esta cadeira? Sua ameaça fingindo não soar como ameaça? Está dizendo que vai me torturar. Agora eu estou preparado. Estou pronto para ferir, ser ferido, e não lhe entregar nada. Você já falhou.”


A figura permanece calada por um instante antes de responder. “E está disposto a morrer?”

Frank sentiu seu coração acelerar, e o controla com um lento e longo suspiro. "Se for preciso, sim." Preciso achar uma distração, para me livrar dele. "Mas isso deixaria seus donos um pouco putos, eu suponho."

A piada não cola. A figura gesticula com a mão, como se estivesse afastando um pensamento. "Talvez. Isso só pode acabar de dois modos: ou nós saberemos em breve ou nós nunca saberemos.” Ele caminha para fora da vista, e Frank pode escutar seus passos ecoando por detrás da cadeira.

Hehe. Mais uma tática retirada do Interrogatório 101 — lembrar um tema de seu domínio sempre que estiver em dúvida. Frank não sabia se deveria estar grato ao Destino ou ter pena do pobre coitado pela sua transparência.

“Suponho que devamos começar com o básico," diz a figura, e Frank sabe que ele está muito próximo. Uma mão apoiada à parte da cadeira. "Diga-me quem é você.”

Mas o que é isso?

Frank ponderou sua resposta. “Eles não lhe disseram, quando me trouxeram para cá?”

“Você não tem mais liberdade para fazer perguntas aqui, eu receio. Quem é você?”

Um cerne de dúvida surge nas entranhas de Frank, e rasteja pelo seu sistema nervoso central. Isso não está certo. O modo como eles investiram contra a capela, eles precisariam ter documentos detalhados sobre a sua estrutura, pessoal e defesas. Frank já esteve sob a custódia deles antes; não mandam interrogadores para fazer o trabalho de um escrevente.

“Não estou engolindo essa”, anuncia Frank.

“Engolindo o quê? Eu lhe fiz uma pergunta, e você está prestes a responder.”

“Isso é uma farsa. Você já sabe quem eu sou.”

“Eu lhe fiz uma pergunta, e você está—”

“Não. Vá se foder. Diga-me você o que quer saber, e nós vamos—”

Dor, súbita e completa, inundando até o último centímetro dele capaz de sentir. Seus membros. Suas genitais. Cada folículo de cabelo. O resto da frase sai de sua boca como um grito inarticulado, o único sinal exteriorizado dessa experiência. Suas estranhas algemas, o que quer que sejam, tornam impossível se debater.

A dor cessa tão rápido quanto começou. Frank supõe que devem ter instalado uma interface neural, que diz ao seu cérebro para fazê-lo sofrer como você poderia comandar um cão bem treinado. A figura retorna ao refletor cegante, mais próximo agora, incidindo sobre ele.

“Frank, eu lhe fiz uma pergunta. Diga-me quem é você.”

“Você acabou de dizer meu nome, seu doente mental, então o quê—”

Mais dor. Frank grita, canalizando raiva no som, a única coisa que ele consegue pensar para manter a sanidade.

Ela para, deixando para trás uma dor entorpecida em seus músculos. A figura o observa, imóvel como a morte.

“Diga-me quem você é, Frank, e não precisaremos mais fazer isso.”

“Eu não entendo,” diz Frank, odiando a si mesmo por quanto essa frase soou como um apelo.

“Engraçado,” diz a figura. “Até agora pouco você estava me acusando disso. Talvez eu possa educá-lo.” Ele anda até o feixe de luz do refletor, parecendo por um momento como um anjo em ascensão ao paraíso.

A luz se apaga, substituída pelo suave brilho dos painéis. Os olhos de Frank se ajustam, e ele vê que é vítima de outro clichê. Seu interrogador é tudo que ele esperava — genérico, altura mediana, terno cinza liso, e óculos escuros.

Ele não esperava reconhecer o rosto do agente, mas reconheceu. “Você… eu saquei agora. Você plantou a bomba.”

O agente acena a cabeça.

“Maldito seja, Mason. Nós fizemos você um de nós.”

O agente sorri maliciosamente. “Estou retornando o favor. É o mínimo que eu posso fazer, depois de todo o massacre.” Ele coloca as mãos nos bolsos. “Agora. Diga-me quem é você.”

Dia Menos 4 
Rio de Janeiro

Os operativos Tecnocratas vieram como sempre fazem, vestindo o uniforme da autoridade legítima. Dessa vez era a Unidade de Polícia Pacificadora, a resposta do Rio para décadas de domínio nas favelas por traficantes de cocaína. A UPP é uma unidade especial da Polícia Militar, organizada para substituir a lei marcial do crime organizado por outra reconhecida pelo governo. Mesmas restrições, rostos mais legítimos.

Frank observa do telhado de um cortiço as tropas se dispersarem nas ruas a partir de um perímetro com vans pretas e Caveirões. O zumbido abafado das almas Adormecidas se mistura com a canção dos Avatares — policiais mortais, incluídos entre os verdadeiros invasores, para potencializar a ameaça do Paradoxo.


Ele sabe que ninguém vai questionar a demonstração de força. Os jornais vão noticiar mais um conflito armado entre a escória de vilões criminosos das favelas e a amigável frente de liberação das comunidades enviado pelo governo.

Ele poderia convocar os moradores, e ficou tentado por um momento. Contudo, ao contrário dos seus inimigos, Frank não está disposto a sacrificar vidas mortais para atingir um objetivo. Os magos de Santa Isabel estão por conta própria.

Felizmente, ele está preparado. Ninguém cria uma capela sem planejar para investidas contra ela. De acordo com o plano, Eiko e Burnham estão ocupados protegendo o território da capela agora mesmo, preparando proteções e defesas, movendo os volumes mais vitais da biblioteca para um portal de fuga no porão. Eles fizeram incontáveis treinamentos e cenários de pesadelo compartilhados, graças a Eiko e seu comando da Mente.

Uma explosão ecoa ao longe. Frank se vira para a direção do som.

Ele está errado. A capela já está em chamas.

Frank ativa uma rotina de Correspondência, algo que ele já tinha preparado na rede de becos que serpenteiam a favela, e percorre quarteirões entre ele e a capela em segundos. Ele emerge em um pequeno cemitério da igreja, atrás de seu único mausoléu. Um tiroteio irrompeu nas imediações. Ele ouve gritos, sente cheiro de fumaça e corre para a capela.

Eiko sai pela porta dos fundos cambaleando.

Frank grita o nome dela. Ela o vê, acena a cabeça e agita as mãos, freneticamente, o alertando para fugir.

Então uma luz azul brilhante oscila pela porta, cortando Eiko ao meio. Oscila novamente, mais veloz que a gravidade, e corta as metades, a fazendo em quatro partes. Os pedaços cambalhotam pela grama, fumaça subindo de onde a luz tocou a carne.

Frank não espera para ver o atacante. Invoca Primórdio puro em suas mãos, e o molda com seu comando de Forças numa espiral de fogo e energia cinética, o Paradoxo que se dane.

“Fiat lux”, sussurra, e a dispara pela porta.

O impacto aniquila a maior parte da parede, lascas de concreto e madeira voam. Uma lança metálica gigante com uma lâmina de energia voa, partindo do ponto onde sua explosão atingiu a parede, em direção a sua cabeça. Frank mergulha no chão, disparando uma onda de energia, defletindo a lança para longe, e gira sobre os pés.

Ele vê seu adversário pela primeira vez, se esgueirando da capela arruinada até o cemitério. É um pesadelo reluzente de dois metros e meio de altura, um esqueleto humanóide blindado, construído inteiramente com aço polido. Não, não é aço. Provavelmente Primium, supõe Frank, o melhor para resistir à ataques mágikos.

Frank concentra poder para outro ataque, estendendo seus sentidos até o monstro, para ter certeza que acertará o inimigo… e sente um formigamento familiar…

É a presença de um Avatar Desperto, pulsando dentro da carcaça metálica. Com cicatrizes, mal formado, como se estivesse danificado, mas ainda assim presente. Frank recua, usando mais alguns segundos com seus sentidos de Primórdio para confirmar. Ele não pode negar o óbvio.

Aquela coisa tem uma alma. A alma de um mago.

O monstro estende uma mão, revelando o cano de um canhão debaixo do seu braço, e Frank sente energia se concentrando. Ele grita as palavras de uma contramágica, enquanto o monstro dispara, a rajada se dissipando no ar, agora inofensiva. Os olhos do monstro, parecendo mais sensores vermelhos brilhantes do que olhos de verdade, giram em suas órbitas, processando. Frank presume que ele não estava esperando combater um Mestre de Forças Hermético.

Mais dois deles saem do lado da igreja para se juntar ao combate, lanças de energia preparadas. O amistoso já era. Ele estende ambas as mãos para o céu e começa a invocar uma conflagração digna da Era Mítica.

Frank sente uma picada no pescoço e seu Padrão muda como se estivesse sendo abafado com um cobertor molhado. Ele percebe que é um efeito de Vida logo antes de cair sobre um joelho, visão embaçada. O feitiço se dissipa, escapando pelas brechas na sua concentração.

Frank retira o dardo e o contempla através de um entorpecer nebuloso. Ele vê de relance, atrás dele, o Homem de Preto que esperava pacientemente para atirar e amaldiçoa os Progenitores pelos seus ardis.

Então, escuridão.



Dia 17 - 
Instalação #417

O agente inicia, todo dia, da mesma forma. “Diga-me quem você é.”

Frank continua em silêncio, fitando um ponto na parede. Agora ele sabe, não importa o que ele disser. Eles irão torturá-lo de qualquer forma. Durante as duas últimas semanas, ele tentou todo tipo de resposta que ele poderia pensar. Disse seu nome completo e todos títulos já conferidos a ele pela Ordem. Ele deu respostas abstratas, filosóficas, sobre o lugar dele na Trama. Ele fez comentários jocosos e contou algumas de suas piadas favoritas. Ele gritou os xingamentos mais ferozes que pôde imaginar.

Termina sempre igual. O agente liga a máquina por um período de acordo com seus caprichos, transmitindo uma queimação que percorre o corpo de Frank. Ele não consegue antecipar nenhum padrão nos caprichos do agente. Às vezes, ele está ali para rajadas curtas e sessões de 10 minutos; outras vezes, parece continuar por horas a fio. Provavelmente não, agora que ele pensa nisso, senão já teria enlouquecido completamente.

O silêncio contínuo atrai um olhar intrigado do agente. “Então. Você finalmente está começando a entender.”

Frank poderia ter assentido, se as travas lhe permitissem mexer a cabeça. “Isso não é um interrogatório. Não há nada que eu possa lhe dizer que você já não saiba. Ou você está tentando me quebrar, ou você está apenas tendo alguma diversão doentia.”

O agente olha para o teto por um momento, e solta um suspiro exasperado. “Muito, muito perto. Ah, certo. Mais algumas sessões vão—”

“Espera!” Seu desgraçado, você não vai escapar de falar comigo. “Escute, você é quem disse isso. Isso aqui não precisa ser difícil ou complicado. Eu quero cooperar. Mas você precisa entender, eu não posso cooperar se não sei o que você quer de mim.”

O agente se aproxima da cadeira, inclina-se ficando cara a cara com Frank. Frank deveria ser capaz de sentir o calor de sua respiração, mas não consegue. Ele amaldiçoa a máquina que puseram nele — pode fazê-lo sentir, e pode fazê-lo não sentir, como quiserem.

"Já lhe disse um milhão de vezes o que eu quero. Quero que diga-me quem você é. Está me tomando um longo, longo tempo, e me tornando uma pessoa ruim."

“Não sei que diabos você quer dizer com isso.”

"Porque está cego pela sua própria arrogância. Sabe de uma coisa? Acho que termina hoje. "

O agente se afasta da cadeira, vai para um painel na parede, pressiona um botão. "Controle, prepare-se para aumentar a transmissão de dor para o máximo ao meu sinal."

Uma voz incerta crepita pelos alto-falantes. “Você… você tem certeza, Operador? Nós nunca forçamos tanto ante—”

"Não questione minhas diretrizes, Controle." O agente olha para Frank com feições insensíveis. "Ele é um Mestre de Forças. Ele consegue aguentar."

Frank não teve tempo de protestar, antes da sensação tomar conta dele, e desta vez, a intensidade o priva de visão, reduzindo-o a um estado praticamente catatônico. Ele não sabe se está gritando. Não sabe de mais nada. Ele somente consegue sentir a dor.

Ele faz um esforço para abrir os olhos, e vê o agente de pé, braços cruzados, sorrindo. Desfrutando de seu tormento.

Uma raiva muito grande cresce dentro dele, algo parecido com uma pedra fria e dura no meio do seu peito. Como ousa, esse gerente do McDonald's manter-me aqui, Francis Burlingame, preso como um rato de laboratório? Como se atreve mexer com uma das almas mais poderosas que a Ordem de Hermes já viu desde a Tempestade Avatar para uma tortura simples, fútil e imatura?

Algo mais cresce dentro dele. Poder. Puro e autêntico poder Primordial. Surgindo dele, apesar de todo o Primium que há a sua volta, apesar dos grilhões segurá-lo.

Ele alcança este poder e transforma a sala de interrogatório em um inferno.

Os soldados que o trouxeram para esta sala são os primeiros a atacar. Ele ferve os fluidos corporais de seus corpos com apenas um lampejo de vontade. Um mero segundo e não sobra umidade dentro de seus corpos para chorarem enquanto morrem..

A cadeira vem em seguida. Ele invoca a corrente eletromagnética de toda parafernália tecnológica ao redor — as paredes, a porta, os painéis de comunicação e a própria cadeira — e a canaliza nos circuitos da cadeira. Ela explode em faíscas e fumaça, Frank sente seus membros pela primeira vez desde a sua captura.

Ele pode se mover.

O agente tenta pegar uma arma, mas Frank já se move na direção dele. Frank solta um berro primitivo, transformando o som numa esfera de força cinética, rebatendo a arma para longe e lançando o agente contra a parede. Ele se abaixa, levantando o agente pelo colarinho com seu braço reluzente e cromado—

— e soltá-o, horrorizado. Frank levanta o outro braço. Ele cambaleia de volta.

Ambos são construções esqueléticas feitas inteiramente de metal, refletindo a fraca luz azul do painel.

Olha para baixo e vê o resto do seu chassi. Corpo não. Seu chassi.

Meu Deus. Meu Deus, não.

“Anular comando, sete-dois-quatro-beta-nove. Modo de paralisia.”

Os novos membros de Frank bambeiam, ele cai no chão. O agente se levanta, tira o pó da sua roupa, faz uma rápida avaliação dos soldados mortos.

“Anular comando,” diz novamente. “Retornar ao padrão.”

Frank sente seus membros se moverem, pondo-o de pé, independente de sua vontade. Sua cabeça se move para seguir o agente, que agora está andando para trás e para frente.

“Agora. Diga-me quem é você.”

Desta vez, por não ter resposta, Frank se calou.

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