[páginas 4-9]
Distrito de Shinjuku, Tóquio, Japão
A coisa mais importante que aprendi em meus anos com o Sindicato é que, muitas vezes, vale a pena ser o que os outros esperam que você seja.
Os olhares que recebo no caminho até a Estação Shinjuku me dizem que a imagem que escolhi esta manhã está funcionando como deveria. Parte disto é fácil, porque as pessoas de Tóquio reconhecem um turista quando veem um, e não estou escondendo as peculiaridades de minha ascendência com nenhum Procedimento. Mãe chinesa, pai hispano-caribenho e um caminhar do Tenessi que realmente não agrega muito a mistura.
A outra parte é uma mensagem escrita em pura linguagem comercial. O terno, um Armani genuíno da coleção deste ano — 98% lã virgem, casaco trespassado, calça combinando, cinza ardósia com listras, sem bordados. Uma imitação não funcionaria. Claro, as pessoas não saberiam a diferença, mesmo quando afirmam o contrário, mas elas podem sentir quando você sabe que está mentindo sobre isso. Autenticidade gera confiança. E elas esperam que eu seja confiante.
Elas esperam que eu seja severa também, então escolhi apenas uma pequena base e nenhuma outra maquiagem. O cabelo é cortado curto, mas não estilo pixie, ou outro penteado. Tento contato visual direto com um bando de estudantes passeando em Takadanobaba, quatro homens de barba por fazer, conversando sobre suas esperanças para um iminente izakaya crawl[1].
Dois desviam o olhar. O terceiro me dá um aceno nervoso. O quarto demonstra ousadia suficiente para um sorriso, que provavelmente pensa ser sedutor. Imagino-o praticando no espelho, lhe dou um sorriso indecifrável.
Um de seus amigos bate no seu ombro incentivando-o, mas logo estão fora da minha vista.
As respostas são as mesmas ao longo do resto da minha caminhada. Mesmo em meio as lojas abarrotadas da sensual Kabukicho[2], onde as luzes vermelhas brilham em espírito, se não de fato, não sou abordada por homem, mulher, ou qualquer coisa entre os dois.
Perfeito.
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Noda, Província de Chiba, Japão
A viagem de trem dura menos que uma hora. Torres engrandecidas de neon e aço em minutos encolhem a uma vegetação ondulante, interrompida aqui e ali por humildes estruturas devotadas tanto à utilidade quanto à tradição, ecos de um passado orgulhoso. Fico espantada pela velocidade da transição. É como se os japoneses envolvessem Tóquio e tudo que ela representa em uma bolha, que lhe permite existir somente sob quarentena.
Desembarco na Estação Unga, suficientemente afastada da cidade ao ponto de não reconhecer mais os sinais ou nomes das marcas, comecei a andar na direção norte até o campus local da Universidade de Ciência de Tóquio. Isto me tomou seis minutos e, no caminho, deparei-me com outro aspecto da minha vestimenta escolhida. Na cidade, ninguém me subestimava, mas não era uma forasteira. Aqui, me veem como uma representação viva dos costumes estranhos, alguém que deve-se rejeitar de forma liminar. Os residentes pelos quais passo, educada e proativamente, se afastam. Novamente, correspondo as expectativas retornando aquele tratamento na mesma espécie.
Universidade de Ciência de Tóquio, Campus de Chiba |
O Dr. Junichi Arai, o cabeça do grupo de pesquisas que está me pedindo por fundos, já se encontra no saguão quando entro. Ele me cumprimenta curvando-se respeitosamente numa reverência oriental. Retribuo, de forma mais delicada. Ele é o perfeito tipinho científico obsessivo-compulsivo; cabelos despenteados, óculos de aro pesados, jaleco branco, camisa pólo marinho, e calça cáqui. Tão enfadonho. Um típico comportamento de alguém que compra por conveniência e utilidade, que nunca aprendeu o valor do toque pessoal.
"É bom conhecê-la, finalmente, Chen-san", diz ele, usando o meu pseudônimo atual. "Estamos muito animados que tenha vindo nos ver." Ele fala em japonês, mas meus implantes tornam problemas de comunicação irrelevantes.
Eu o corrijo com severidade. "A empresa está mais interessada em seus resultados do que em seu entusiasmo, Arai-san. Por favor, mostre o caminho."
Ele empalidece, e uma combinação de choque, medo e raiva traz um tremor de sua mão e uma contração de seu olho esquerdo. Então, acena, com a cabeça baixa em deferência e gesticula para um corredor antes de seguir por este. Sinto uma pontinha de pena. Nossa correspondência prévia e minhas pesquisas mostram que ele é dedicado, confiável e humilde. Ele não merece isto. Mas, tenho um papel a desempenhar.
O laboratório é amplo, ocupando a maior parte desta ala do edifício. Os assistentes de Arai ficam alvoroçados, observando a nossa entrada com uma diversidade de respostas: surpresa, aborrecimento, antecipação. Balcões forrados com tanques de amostras e equipamentos de informática segmentam a sala em um labirinto. O brilho dos indicadores e monitores lançam projeções prismáticas ao redor, sob lâmpadas fluorescentes deliberadamente esmaecidas.
Antes da Corrida, Edgar Degas (1834 — 1917) |
Fico impressionada com os toques pessoais contrastando com austeridade estéril. Uma fonte de pedra zen aqui, uma árvore bonsai ali. Retratos de cônjuges sorridentes e crianças. Uma reprodução de Degas Antes da Corrida na parede oeste. Uma caneca de café, com uma passagem do Livro dos Cinco Anéis em kanji: "De uma coisa, aprenda mil coisas."
Hipótese: Para muitos destes pesquisadores, este lugar é um lar.
Dr. Arai guia-me a um dos tanques. No seu interior, um pedaço de tecido de órgãos flutua na solução. Ele o levanta a altura máxima, repleto de orgulho.
“Aqui, Chen-san, pode ver—”
Mas eu já havia chego à estação de monitoramento mais próxima e estava analisando registros e relatórios.
“Chen-san, este equipamento é muito sensí—”
“Você imagina que a firma teria me enviado sem fazer meu dever de casa, Doutor?” Estreito meu olhar, abrindo levemente minhas narinas. "Não estou aqui para ouvir o seu discurso. Estou aqui para examinar o seu trabalho. Agora, por favor, me dê licença."
Esbravejo alto o suficiente para que o trabalho no laboratório seja interrompido. Dr. Arai trava. Viro-me para o computador de novo, dando-lhe as costas.
Estaria dentro dos direitos dele tentar me parar, mas eu empunho o Todo Poderoso Dólar, o único poder divino reconhecido pelos cientistas modernos. Cálculo que há 12% de chance de ele persistir, e estou preparada para isso.
Dr. Arai solta um suspiro exasperado e põe-se longe para difundir a tensão súbita com seus colegas de trabalho. Não consigo controlar o sorriso.
Obtenho os registros que preciso depois de alguns minutos brigando com seu sistema de arquivos. A equipe do Dr. Arai está trabalhando em tratamentos de engenharia genéticas visando a reprogramação da resposta imunológica natural do organismo a vários tipos de câncer, depois de um grande recente com leucemia no Memorial Sloan Kettering Cancer Center de Nova Iorque. A primeira bateria de testes clínicos foi um sucesso, resultando no desaparecimento de células cancerígenas em todos os pacientes de uma ampla variedade de tipos de câncer: de mama, pulmão, bexiga, linfoma não-Hodgkin, melanoma e tiroide.
Uma cura efetiva, de aplicação única, para câncer, indo contra todo o conhecimento médico convencional. Perto do topo da lista de coisas boas demais para ser verdade, pelo menos, até onde as Massas estejam cientes, e mesmo assim estou olhando para tais resultados. Um triunfo nesta escala deveria ser suficiente para garantir publicidade e financiamento a praticamente qualquer instituto de pesquisa no mundo.
Então, por que eles precisam de mim?
Cavo mais fundo nos registros e encontro um orçamento de trabalho. As principais despesas restantes incluem uma segunda bateria de testes clínicos, uma expansão de suas instalações... e diversas entradas indicadas apenas por códigos numéricos, somando cerca de 22 bilhões de dólares em custos operacionais.
Isto responde minha primeira pergunta, mas leva a outra. Esta soma é muito maior do que o orçamento do Instituto Nacional do Câncer recebe em um ano. Por que uma única equipe de pesquisa precisa de tanto?
Busco por referência aos códigos. Nada.
"Dr. Arai", digo, na minha melhor voz de deusa-chamando-um-mortal. Ele se arrasta mais, com a cabeça pendendo novamente. "Explique-me isso." Gesticulo para a tela.
Ele olha para a tela, depois para mim. "Eu não entendo." Reconheço a hesitação, a reação natural de quando se pensa que estar sendo testado.
Suavizo meu tom, apelando para a simpatia. "Por que essas entradas estão codificadas?"
E… não funciona. Sua mandíbula se cerra. Ele me observa por um tempo. “A Iridium Medical providenciou-nos esta análise orçamentária, pouco antes de lhe contactar, ou assim disseram." Responde-me.
"E não achou que esses números pareciam... incomuns?"
"Mais uma vez, Chen-san, eles são seus números, não meus."
Dr. Arai cruza os braços. "Pensei que havia dito ter feito sua lição de casa."
Tudo que posso fazer é olhar para o monitor. "Também pensei, doutor. Também pensei."
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Retorno ao edifício por volta das duas horas da madrugada. Dois guardas armados estão em pé na frente da entrada. Não são seguranças do campus, mas brutamontes equipados com pistolas e Kevlar. Minha primeira impressão estava certa.
Dr. Arai não estava muito feliz com as minhas respostas evasivas e minha utilização de todos os clichês que circulam pelo Facebook sobre medicina corporativa: Que não há dinheiro suficiente para as Grandes Farmacêuticas; Estamos interessados em tratamentos contínuos com margens de lucros de longo prazo, não curas instantâneas que sugam todo o orçamento da indústria; Estamos aqui para espremer cada último centavo das pessoas doentes.
É uma fórmula fácil e rápida para desagradá-lo. Talvez tenha sido um golpe baixo, mas preciso dele distraído. Dr. Arai, é um homem inteligente. Se começar a somar dois e dois, vai desenvolver o mesmo pressentimento que tenho. Não posso me dar a esse luxo.
Os guardas começam a conversar, me pergunto se é sobre algo tático até que um deles ri. Percebo que estou estalando meus dedos enquanto os observo, um velho hábito pré-confronto que tenho desde antes de começar a trabalhar para os Pagadores. Amplio a entrada do meu córtex visual com meus implantes, analisando os micro-movimentos deles. Conclusão: Estão entediados e não exibem sinais de hiper-consciência ou qualquer outro aprimoramento Iluminado, e estão ali para intimidar ao invés de confronto. Avaliação de ameaça: Mínima.
Isto poderia decorrer tranquilamente. Poderia usar Procedimentos para enganá-los fazendo-os sair da posicão, distraí-los ou persuadi-los para irem. Mas não sei para quem se reportam e se tem acesso a reforços.
Giro meus ombros para trás, outro velho hábito. Parece que terá de ser uma abordagem direta e terei que arriscar um pouco de barulho.
Ok, confesso que costumo amar esta parte.
Me aproximo dos dois guardas com minha melhor atuação de “dama vulnerável e perdida em um lugar perigoso”; ombros curvados, olhar assustado e suspiros de frustração. Meu ritmo cardíaco está acelerado, e o surto de adrenalina ajuda com o embuste.
O guarda da minha direita tem uma das duas reações mais comuns, franzindo a testa com preocupação. “Senhorita, você está bem?” Quase chego a sentir um pouco de compaixão por ele. Então desfiro um golpe faca de mão em sua garganta com minha mão direita.
Me firmo em minha perna direita com a esquerda puxo sua perna esquerda de baixo dele. Ele cai. Golpeio com a palma da mão o seu nariz, quebrando-o.
O ciclo OODA[3] do seu parceiro finalmente se inicia e ele avança. Viro, giro e dou um chute em seu joelho mais próximo, ouço algo se quebrar. Ele desmorona, golpeio com meu joelho direito no lado da sua cabeça.
Permaneço ali o tempo suficiente apenas para confirmar que eles continuarão caídos.
Agora, ao trabalho de verdade.
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Assim que começo a hackear o computador do laboratório pra valer, o cansaço pós-acão me atinge, me recurvo sobre o balcão pelo meu próprio peso. A superfície fria e negra da chapa aglomerada parecia absurdamente confortável e digna de descanso. Sistema nervoso parassimpático estúpido. Eu estive longe de ação por muito tempo.
Repito o mantra que aprendi uma eternidade atrás durante o treinamento, o sinal de um sugestão pós-hipnótica implantada: O Resultado é o Resultado. Só vitória é vitória.
Pela nona repetição, a fadiga desaparece. Haverão consequências posteriores. Haverá tempo para elas mais tarde.
Em uma hora, tenho toda a informação que precisava.
Pego meu smartphone e faço login no app que me permitia acessar suas funções mais elevadas: um pacote de sensores e ferramentas de coleta de dados que iria fazer seu buscador Google ficar com inveja. Executo uma análise da massa de todos os objetos no laboratório, encontro uma anômala concentração de massa e espaço, e caminho até sua fonte.
A pintura de Degas. Claro, é grande o suficiente. Removo-a da parede. Uma enxurrada de sons invade o laboratório como se abrisse um frasco hermeticamente fechado. Vozes tagarelando, máquinas zumbindo e crepitações de estática.
Atrás da pintura, uma janela aberta levando para outro laboratório, maior do que este edifício, mais de dois quilômetros de cientistas e consoles cromados reluzentes no meu campo de visão. Os tanques de amostras na minha frente se assemelham aos do laboratório que estou, só que muito maiores, cada um contendo um cobaia humana, nua e empalada por tubos.
“Está acabado”, disse, outra vez com voz de deusa, “tragam-me alguém responsável.”
Após cinco minutos de embaraços e resmungos, finalmente sou recompensada pela minha insistência. Uma mulher pálida, de constituição menor que a minha, vestindo um terno semelhante ao meu, cabelo amarrado para trás com tanta força que parecia de plástico. Idade por volta dos cinquenta anos, o que para uma Progenitora de alta hierarquia poderia significar qualquer idade entre 55 a 255 anos.
"Sou a Diretora Dannika Cruz", diz ela, com aquele tom que as pessoas tem quando esperam que apenas a menção do seu nome signifique algo. "Apelaremos aos seus superiores, se necessário."
"Duvido que os encontre cooperativos." Indico a janela entre nós. "Colocalização espacial? Risco sério de Paradoxo."
“Nós tomamos as devidas precauções, senhorita…?”
Checando minhas credenciais, claro. Não lhe dou satisfação. “Pode me chamar de Synapse.”
Ela cruza os braços e franze os lábios. "Codinomes são tão deselegantes". Tradução: Sou tão superior a você que não precisamos perder tempo com tais coisas. "Havia algo anômalo na solicitação de orçamento? Estávamos certos de que tudo estaria em ordem. "
"Estava certa de que avaliava o trabalho de um cientista dotado. Não vou financiar esta farsa."
Ela muda para o olhar inocente, efetivamente rotineiro. "Dr. Arai é muito talentoso. Pode até tornar-se Iluminado algum dia."
“Antes ou depois de lhe contar que o trabalho dele não é propriamente dele?”
Ela empalidece. Cerra sua mandíbula. Choque e ofensa. Agora estou chegando a algum lugar. "Nós já trabalhamos por meio de representante antes. Nossos modelos de previsão tem mostrado suficiente crença generalizada em manipulação genética para garantir resultados entre as Massas. Eles já estão fazendo progressos neste campo sem a ajuda Iluminada. Que mal há em dar-lhes um empurrãozinho?"
"Analisar números em computadores Ternários e fornecer um exército de clones não é um empurrãozinho, diretora. É um desastre estatístico, esperando para ceifar vidas. "
Ela se torna ainda mais pálida, permanecendo em silêncio. Isso não parece possível, mas eu vi um monte de coisas impossíveis acontecerem.
Me permiti o luxo de um sorriso. "Encontrei seus arquivos. E nós temos regras para este tipo de coisa. Se não funciona nos labs deles com a equipe e equipamento deles, não funcionará. E ponto final. Alguma coisa vai dar errado, e não terei isso na minha consciência. "
"Você prefere a alternativa." Não é uma pergunta, mas uma decisão. Ela sabe a minha resposta, e me odeia por isso.
"Não podemos simplesmente entregá-los um mundo em que o câncer não existe. Não sem custo." Conforme as palavras saem, eu também me odeio.
"Eles já desejam tal mundo. Não consegue ver isso?" A cor está começando a voltar ao rosto dela, mas agora ele está vermelho de raiva.
Espero que ela não ouça o tremor na minha voz. "Correção: eles sonham com isso. Eles não acreditam nele. E da última vez que verifiquei, ainda é um paradoxo quando determinados sonhos se tornam realidade. "
Ela balança a cabeça, incapaz de falar por causa do seu desgosto. Pego o Degas e penduro de volta. Os sons desaparecem, deixando-me no silêncio do laboratório.
Parto. Deixando o laboratório, o campus, o interior e os olhares de desaprovação dos cientistas para trás. Estou de volta em Tóquio pela primeira luz da manhã, mas o sol nascente não pode queimar a sua imagem da minha mente.
1- Izakaya crawl, um trocadilho com a gíria inglesa “pub crawl”. Pub crawl é quando um grupo de pessoas tenta visitar o maior número de pubs possível, bebendo uma certa quantidade de bebidas alcoólicas em cada visita. E Izakaya é um tipo de bar típico japonês que serve alimentos para acompanhar as bebidas.
3- Ciclo OODA(Observar, Orientar, Decidir e Agir), conceito originalmente aplicado aos processos de operações de combate, muitas vezes ao nível estratégico das operações militares. Atualmente também é utilizado para compreender operações comerciais e os processos de aprendizagem.
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