[páginas 4-9]
Prólogo: Lançamento
Para uma cidade sem residentes, Ordos possuía esgotos extremamente fedorentos, uma mistura de látex, alcatrão e ozônio. Em grande parte isto se deve ao fato do governo estar construindo a cidade em um ritmo frenético, por isso há toda espécie de resíduos de construção por aqui. Tento não pensar sobre a toxicidade destes materiais sobre os quais estou caminhando. Ou pensar sobre as entidades não terrestres infestando estes esgotos, que a cada dois ou três dias se livram de suas peles banhando-se com seus próprios vômitos ácidos — o que adiciona um tipo de terror bem peculiar.
Explorar novos aromas fantásticos é apenas uma das muitas vantagens de se inaugurar uma base de lançamento nesta cidade vazia na fronteira da Mongólia Exterior. Outra é trocar tiros com alienígenas, quando tudo que você tinha de fazer era uma caminhada para coletar alguma telemetria paralaxe. Mas é isso que acontece quando se constrói uma vasta rede de túneis subterrâneos longe das habitações humanas: outras coisas acabam por estabelecer residência. Como os Engenheiros do Vácuo.
Três criaturas alienígenas correm como um foguete pelo túnel cilíndrico da principal linha do esgoto em direção ao meu time. Galopam até nós sobre inúmeros pseudópodes e chicoteando apêndices farpados enquanto vêm. De suas afiadas bocas em forma de bico saem gritos horríveis que ecoam pelo túnel. O estrondo dos tiros de submetralhadora em ambos os lados chega a ser um alívio.
Quando as criaturas tombam é um negócio nojento, com respingos de ectoplasma e sons dissonantes para todo lado. Por fim, eles estouram como balões d’água. Pavel, Anselm e eu fomos em frente; Tina fica para trás, cobrindo os carcaças com chamas, cortesia de seu lança-chamas de plasma. Caso contrário, geram mais de sua espécie quando quase decompostos, razão pela qual temos tanta dificuldade em erradicá-los.
Ecos de mais disparos ressoam na vala de concreto à nossa direita, junto com um pontual "whump" de armas mais exóticas. Ao levantar meu punho o time faz uma parada. Pavel olha o túnel à frente e depois para mim. “Quem acha que é?”
Balanço minha cabeça. “Seiláeu. Pelo som, talvez algum dos nossos.” Com apenas um aceno meu, o time corre através de gosma na altura dos tornozelos em direção ao som.
“Comando de Lançamento,” digo no meu headset. “Aqui é o Capitão Xiao; estamos retornando com nossas leituras telemétricas, mas ouvimos disparos nos esgotos — setor sete. Temos pessoal ali?
A voz que retorna crepita com estática. “Aqui é o Comando de Lançamento. A única coisa que vejo no registro é um time de ‘trajes de combate’ encarregados de suplementar nossa segurança.”
“Ah, isso foi bem gentil da parte da Iteração X.” Sorrio enquanto corremos em direção à luta. “Quantas sugestões eles enviaram à Autoctonia sobre mandar fuzileiros para uma missão?”
“Apenas meia dúzia.” O tom de voz do Comando é ainda mais sarcástico que o meu. “Estão aprendendo a ter tato, o que por si só já é preocupante. Xiao, há apenas uma hora restante na sua janela de lançamento.”
“Afirmativo. Não vou demorar muito dando uma mãozinha.”
Eles nem cogitaram deixar compatriotas para trás. “Entendido. Comando de Lançamento desligando.”
Nosso túnel acaba em um ponto de confluência, as grandes paredes da câmara ornamentadas com mais de uma dúzia de canos, com três metros de largura cada, vomitando água suja da chuva. Aparentemente meia dúzia de trajes de combate com o brasão da Iteração X em seus ombros estão caídos na enxurrada de esgoto; um dos trajes continua de pé, esvaziando um pente para o centro da câmara.
Quando nós saltamos do nosso túnel para uma sujeira à altura do joelho, avistamos o alvo: uma grande pilha de carne tremulante, tendo uma carapaça dérmica e balançando uma pletora de tentáculos a se contorcer. São tentáculos farpados, gotejando veneno esverdeado, que corrói armaduras de cerâmica — descobri isso da pior maneira três meses atrás. Alguns tentáculos ostentam bicos nas extremidades, o que, suponho, os tornam pescoços. Isso é o que acontece quando dez ou mais desses alienígenas se amalgamam, mas a solução é a mesma: mate-o com fogo.
Direciono meu time para forçar a monstruosidade em direção à traje remanescente. Nós começamos com nossas insignificantes submetralhadoras, as balas ressoam sobre a carapaça dérmica como um xilofone enlouquecido. Tudo que conseguimos, foi chamar sua atenção.
Tentáculos e cabeças desprovidas de olhos berram na nossa direção; graças a um rápido movimento de pernas e um Procedimento temporal às pressas saímos debaixo deles. Em vez de nos acertar, os pseudópodos bateram no chão, levantando um esguicho de esgoto fétido. Pavel pensa rápido o suficiente para trocar sua arma de fogo pelo lança-estaca e prega dois tentáculos no chão com as estacas pontas-de-ferro. Batalhões de Fronteira: preparados e criativos.
A traje nos deu um aceno de reconhecimento. A voz dela chega aos nossos fones em inglês. Sotaque canadense oriental, suponho. “Contente em encontrá-los! Tenente-coronel Jessica Silver. Ouvi que Ordos era emocionante, mas não esperava por isso!” Ela descarrega uma salva de tiros em um bico que a atacava, o suficiente para fazê-lo cair pra trás gritando em agonia.
“Capitão Chris Xiao, CPD[1].” Aponto para o tronco tremulante do alienígena revestido por uma grossa carapaça. “Aquele é o seu alvo, Coronel. Cada apêndice que corta, é substituído por três. Enquanto o cérebro está todo ali, são e salvo.
“Tem ideia melhor?”
Pego uma granada de concussão no meu cinto e com o dedo ajusto as configurações na pequena tela touchscreen. “Saiba sempre o que está enfrentando.” Digo isso e dou meu melhor arremesso de beisebol, jogando a granada sob a barriga ondulante da criatura. “Preparem-se para abrir fogo.” aviso, levantando minha arma.
Quando a carga concussiva explode, por uma fração de segundo a membrana da superfície da besta ondula como lago incomodado por uma pedra. Então, sons de lacerações violentas e úmidas saem da criatura como se anunciassem seu desmoronar. Pedaços do monstro voam em todas as direções, seus órgãos dilacerados pendendo pelo lado de fora e convulsionando devido às neuroconexões perdidas.
Alguns pedaços se esparramam pela parede, outros caem na água. São treze deles, e nós cinco ceifamos todos antes que conseguissem se reerguer novamente.
Silver confere o display no braço de seu traje de combate. “Precisamos sair dessa área antes da ativação dos mecanismos de autodestruição dos trajes.” Ela nos avisa e segue pelo túnel do qual saímos. “Por aqui?”
“Espere um pouco.” Encaminho um dos meus homens para o corpo mais próximo. “Anselm talvez possa fazer algo.”
“Jim, sou xenobiólogo, não médico.” Anselm murmura, mais para formalizar do que reclamar, enquanto olha para o Iterador caído. Ele digita no painel do braço do traje, analisa as leituras, depois tecla mais alguns botões. “Os sinais vitais estão fracos. Esses caras não vão durar muito.”
“Então, vamos acabar com seu sofrimento.” Silver grita da boca do túnel. “Vi o ataque que meus homens sofreram, estão agonizando.”
“Não deixaremos ninguém para trás.” As palavras saíram de forma quase automática enquanto me aproximava de Anselm. Se ela respondeu, não ouvi.
Ele me dá uma encarada, então, continua a digitar no painel do traje. “Ela está certa. Estão mais feridos do que posso ajudar, mas posso disparar o modo de impacto dos trajes, irá formar um casulo de espuma à sua volta, como se tivessem sofrido uma queda violenta. Os sistemas médicos acoplados podem injetar analgésicos e daí poderei colocá-los em uma estase temporal. E levá-los para o centro médico...”
“Creio que posso ajudá-lo com isso.” Silver aproximando. “Ficarão bem lá com uma ajudinha?”
Anselm tecla mais alguns botões piscantes e repentinamente todos os trajes suspiram. Anselm dá um pequeno aceno a ela.
“Pois bem,” a Iteradora pressiona algo display de seu traje. ”Atenção!” Os trajes pulam desajeitadamente pondo-se em posição de sentido. “Formação em fila única. Descansar armas. Da última vez em que confiei em um sistema inteligente com uma arma me custou um namorado.” Ela pisca para mim sob seu visor. “Companhia, à frente!”
. . .
Ignoro meu traje de piloto ao entrar na ponte de comando. Tecnicamente falando, decolar sem o uniforme viola meia dúzia de políticas de segurança, mas ninguém está esfregando as regras na minha cara. O Comando de Lançamento está até me incentivando: “Xiao, precisará decolar nos próximos cento e oitenta segundos ou perderá a janela.” Pelo menos optei interpretar aquilo como um incentivo.
“Ligue a turbina principal.” Ordeno à Tina enquanto escalo para a cadeira do capitão e brigo com o cinto de segurança.
“Capitão, sequer colocou o capacete!” Tina me repreende, mesmo assim, com um sorrisinho no rosto, ela aperta os devidos botões. A nave estremece. Luzes piscam. Clácsons[2] berram.
Pela janela da cabine vemos o teto retrátil do silo de lançamento bem acima de nós começar a ficar cada vez mais perto. “Agora é a hora de me dizer se algum de nossos sistemas não estão ok.” Ponho meu capacete. “Na verdade, antes de termos ligado as turbinas era a hora certa.”
“Estamos sentados sobre um motor de conversão-total que está destroçando matéria e transformando-a em um pilar de fogo.” Pavel reporta, configurando botões e alavancas. “Estamos indo diretamente para um campo de interferência subespacial planetário, que irá dilacerar nossas mentes e almas se perdemos 0,02% da brecha variável no campo, a qual diminui enquanto conversamos. Todos os sistemas operando conforme esperado.”
Sempre me impressionou quão lentamente a nave se move inicialmente enquanto luta contra a gravidade para alcançar o céu. Passamos pelos gigantescos portões do silo de lançamento, a não mais que vinte milhas por hora, direto para cima. Sessenta segundos depois, Ordos não é nada além de um borrão de uma coluna cinza no meio da amarronzada planície mongoliana.
“ETA[3] até a brecha variável, seis minutos.” Tina reporta. “A brecha fechará em seis minutos e quarenta e cinco segundos.”
“E eu pensando que isso ia ser apertado.” Digo, mais para beneficio da tripulação. O humor ameniza a tensão.
Então, Tina produz um ruído estranho, como se tivesse se engasgado. “Espera. Nossa velocidade está divergindo do plano de voo. Um por cento. Dois. Não estamos acelerando o quanto supostamente deveríamos.
“Propulsor operando ok.” Pavel procurando algo freneticamente nas telas de todos monitores. “Espera, estamos duzentos quilogramas sobrecarregados.”
“Que merda é essa?” Posso escutar ecos vindos do Comando de Lançamento incrédulos pelo meu fone. “Preparar para aceleração; Vou forçar o propulsor e ver se conseguimos compensar a massa extra. Pavel escaneie a nave.”
“Trabalhando nisso.”
A nave acelera quando ponho mais Energia Primordial no motor. Todos na ponte de comando respiram com dificuldade devido às esmagadoras forças G. Uma constelação de luzes de alerta brilham por todo painel de instrumentos.
“Aceleração excedendo ao planejado” Tina reporta nervosamente. “Chegaremos à brecha, mas... teremos muito pouco espaço para manobrar, Capitão.”
Seguro o manche entre meus joelhos. “É exatamente isso que faz a montanha-russa divertida.”
“Capitão, a massa não contabilizada está no compartimento dos veículos de exploração.” Pavel resmunga devido a aceleração. “A espectroscopia preliminar sugere… cerâmica e carbeto de tungstênio. Duzentos quilogramas, o que é isso? Uma bateria extra para os veículos?”
“Não,” Giro as câmeras internas para o compartimento. “Duzentos quilogramas de cerâmica e carbeto de tungstênio… e um pouco de carne dentro… um traje de combate da Iteração X clandestino.” Pressiono o intercomunicador para transmissão. “O que está fazendo aí atrás, Silver?”
Atrás de um veículo atarracado, Oficial Silver está caída contra à parede, comprimida ali pela propulsão da nave. “Sei que é um pouco tarde,” ela murmura, “mas… permissão para subir a bordo, Capitão? Sua viseira abre, e apesar da careta, devido à aceleração, ela consegue piscar.
Anselm se inclina o máximo que pode sob seu cinto para fazer um preocupado contato visual comigo. Põe seu headset no mudo, mas não diz nada. Esperando por uma ordem minha. Ao invés disso, lhe devolvo o olhar. Ele assente com a cabeça.
“Bem vinda a bordo, Oficial.” Troco a tela principal para exibir os campos do subespaço à frente. O painel que surge diante de nós enquanto nos aproximamos da Anomalia Dimensional, com um buraco minúsculo que se distorce e se move ao longo das linhas de força dimensional. Nossa janela de lançamento. “Segurem-se em algo se puderem. Nossa estrada acaba de ficar acidentada.”
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