Prólogo:
Recuperação
Recuperação
“Obrigado por me receber.”
Magro, óculos com armação de arame, terno amarrotado, cabelo grisalho nas têmporas: o homem já teve dias melhores. Ele se senta à minha frente em meio as conversas da cafeteria, e faz uma careta. “Não que eu tenha muita escolha. Reid escondeu esses códigos de convocação muito bem. Ouço o chamado, e obedeço.” Ele me olha de cima a baixo, e o vaporizador de leite guincha ao fundo. “Embora estivesse esperando uma equipe de resgate.” Então o homem com idade avançada e cabelos grisalhos olha para todos os estudantes universitários ao redor, avaliando-os como possíveis capangas à paisana.
“Temo que eu seja a equipe de resgate”, digo, e ele parece surpreso e um pouco ofendido, dou de ombros na minha poltrona estofada. “As coisas mudaram.”
Ele me encara novamente, como se pudesse pegar uma amostra do meu DNA e decifrar que tipo de ameaça represento. Seus lábios entreabrem, revelando uma dentição perfeita. “Sabe que posso matá-lo antes que pestaneje.”
Balanço a cabeça sobre minha xícara fumegante. “E todo mundo aqui, suponho. Destruindo as janelas, possivelmente, e cortando todos em tiras? Mas você não quer fazer algo asism."
“O que o faz afirmar isso, Doutor…?”
“Talley”, prontamente me apresento. “Eu devo chamá-lo de Victor? Seu arquivo não contém muitos detalhes pessoais, posso imaginar que esteja usando um nome diferente nos últimos anos…” Ele me dá um lento aceno concordando, respiro fundo tentando ser discreto. Suspirar agora só demonstrará nervosismo, e ele não precisa saber que estou apavorado.
Me inclino um pouco para a frente enquanto me recomponho. “Enfim. Não vai querer matar a todos aqui, por dois motivos. Primeiro, você supõe que eu tenha uma cópia minha guardada em algum lugar, o quer se tornaria perigoso, já que da próxima vez eu poderia ir atrás de você com um par de HIT Marks”.
“Presumo que não”, disse, levemente sorrindo. “Se enviaram um jovem doutor em vez de uma equipe de resgate, há algo errado”.
Imito seu sorriso. “Não sou tão jovem como pareço, Victor. E há outro motivo para não transformar essa Starbucks em um banho de sangue nesta noite: você não quer.” Indico a pasta de arquivos sobre a mesa baixa entre nós. Dentro há um acervo fotográfico, uma sequência de horríveis massacres ao longo de última década.
Ele não pega a pasta.
“Você deixou um grande rastro de sangue atrás de si, Victor”, digo, “mas eles nunca eram inocentes, eram? Traficantes, contrabandistas de armas, mafiosos e políticos corruptos. Nunca um bando de universitários se enchendo de cafeína e estudando para exames semestrais”.
O olhar do homem se encheu de raiva, como se fosse uma ofensa a sugestão dele ter um código moral. “O que você quer, Talley?”, diz irritado.
Tento lhe dar um sorriso confiável para controlar a situação. “Quero ajudá-lo, Victor. Quero tirá-lo da geladeira”.
“Reid disse que queria me ajudar”, é tudo o que ele diz, observando a minha reação.
Aperto os lábios em reprovação e faço minha jogada. “Suas habilidades telecinéticas tem um alto nível de rejeição; seu arquivo diz que precisa de injeções regulares de fluido espinhal. A julgar pelas suas atividades,” digo, indicando com a cabeça a pasta cheia de fotos sangrentas, “as tem conseguido sozinho?”.
Recebo um sutil assentimento da parte dele.
“Podemos sintetizá-lo em lab para você. Não é preciso matar para consegui-lo”. Sem pensar, acrescento: “E sabe que poderíamos fazer com uma qualidade bem melhor do que obteria na rua a partir de humanos.”
Ele fica quieto por um longo momento. “E em troca?”.
“Bem, nós queremos que volte ao Controle de Danos”, eu digo, e em seguida acrescento. “Mas como eu já disse: as coisas mudaram. É um novo tipo de Controle de Danos, não como antes. Apenas… alvos dignos. Posso garantir-lhe que…”.
“Reid me deu garantias semelhantes”, o homem interrompe, com o mesmo sorriso melancólico. “Onde está Reid, afinal?”
“Morto”.
“Tem certeza disso?”, pergunta, e por um momento penso ver uma centelha de esperança nos seus olhos. “Sua gente tende a manter cópias de segurança”.
Afundo de volta em minha poltrona, confirmando com a cabeça enquanto me recordo. “Positivo”.
Permanecemos sentados em silêncio, sem olhar um para o outro, por um longo período. Finalmente, ele diz, “Remuneração. Preciso de seis dígitos”.
“Baixíssimo valor, seis dígitos”, eu recusaria, prontamente, mas como não é o meu salário, apenas sorrio. Ele está dentro.
. . .
Quando saio da cafeteria, Konrad estará me esperando, encostado na parede, como se fosse o dono do lugar. E, até onde sei, ele é — aprendi há muito tempo a nunca subestimar os alcances financeiros de um agente do Sindicato.
Ele se desencosta da parede e alinha seus passo logo atrás de mim. “Doutor Talley.”
Não me viro. “Senhor Rupasinghe”.
“Meus parceiros estavam esperando um carregamento seu para ontem”, ele aperta o passo, caminhando ao meu lado. “Espero que nenhum imprevisto tenha acontecido ao seu lab”.
Paramos em uma esquina, me viro para ele, tentando não transparecer minha irritação. Não tenho tempo para isso. “Nada mudou, estive apenas ocupado. Você receberá suas drogas, Konrad”.
Ele olha em volta, indicando os transeuntes que nos rodeiam. Ele prefere falar sobre “carregamento” do que “drogas”. Faço uma nota mental para na próxima vez me referir como um “carregamento gigantesco de drogas”. “Nós temos um contrato que estipula um cronograma de entregas —”, ele começa.
“E, por isso fomos penalizados com cinco por cento que o contrato prevê”, Sibilo. O semáforo muda de cor, todos descem o meio-fio e começam a atravessar a rua.
Ele corre atrás de mim. “Eles não estão tentando punir-nos, Talley. Nossos associados estão apenas preocupados. Além disso, podemos utilizar esses 5% a nosso favor, como discutir com o senhor na cafeteria, o que quer que fosse”.
Ignoro a questão implícita. “Tinha outros negócios a tratar, Konrad” digo, levantando a voz para vê-lo encolher-se. “Não pude passar horas em meu lab para fazer-lhe um carregamento gigantesco de drogas”.
Os demais pedestres nos olham de soslaio, e assim que chegam ao outro lado da rua todos se afastam de nós o mais rápido possível. Konrad me fuzila com os olhos, está prestes a responder quando ambos os nossos telefones começam a tocar.
Ele toca seu fone de ouvido, enquanto olho para a tela do meu telefone. Ambos resmungamos em uníssono.
“Meu carro está para este lado”, diz ele, sigo-o.
. . .
No caminho, a outra metade de nossa Amálgama nos informa por mensagem que eles já estão chutando a porta e entrando. Após cinco minutos, chegamos ao armazém, e ainda não tivemos uma atualização da situação. Encontramos seu carro vazio e estacionado do outro lado da rua deserta e silenciosa. Alguma coisa está errada.
O rastreamento de DNA nos leva a porta dos fundos, que esta caída. A trilha desaparece, ao cruzar a porta, porém, com as leituras estatísticas, associo este fato ao uso de métodos Tradicionalistas.
Konrad olha para os dados embaralhados do meu scanner das leituras em direção à porta, e depois, me confronta com um olhar. “O que está esperando? Você é a artilharia pesada. Tome sua posição”.
Então entramos, teclo um código no scanner que ativa as sequências genéticas normalmente escondidas nos íntrons do meu DNA. Minha pele ondula e se ouriça, e então, a familiar fisgada da potencial Rejeição é expelida de mim. Minha temperatura corporal sobe três graus, mas felizmente estamos dentro do armazém.
A parte dos fundos do local é coberta de prateleiras altas, cheia de caixas. Noto vagamente que Konrad está registrando os códigos de barras e falando sozinho, porém os sons vindos do caminho à frente tomam a maior parte da minha atenção. Duas vozes exigem respostas, além de um terceiro gemendo intermitentemente. Essa última pode ser Chris. O que mantém o paradeiro de Parker é desconhecido. “Algo não se encaixa”, sussurrei. “Dois imbecis Tradicionalistas não subjugariam Parker e Chris, não em cinco minutos”.
Aceno para Konrad parar, em seguida, massageio minha têmpora. Sinto uma pequena alfinetada de dor quando o cisto subdérmico se rompe, e pressiono o coquetel retroviral que estava preso dentro dele mais próximo à minha cavidade orbital e logo minha visão começa a tremular de repente. Repentinamente, o local parece florescer em cores: verdes vivos, amarelos brilhantes e quentes, e vermelho-sangue. Os cantos da sala afundavam em anil escuro e frio. Nossos camaradas deixaram rastros luminosos de calor se dissipando à minha frente, que serpenteavam pelo labirinto de prateleiras.
Encontro um esguicho esverdeado, perdendo calor, no chão e dois batimentos cardíacos letalmente fracos; o som do cão da arma batendo na bala vindo logo acima de mim. A zona de matança. Me jogo para trás em cima de Konrad, e uma rajada de balas acertam minhas costas. Dói como o inferno, mas a quitina[3] que atualmente sai de minha espinha e costelas transforma a dor das balas de ponta oca em nada mais do que traumatismos contusivos.
Não se engane — traumatismo contusivo dói pra caralho.
Com um rosnado, eu salto 12 metros, agarrando a atiradora da sua posição no topo das prateleiras, e jogando-a no chão de concreto. Konrad volta sua atenção para o corpo amassado dela, mas ele torna a se mover.
Os outros dois Transgressores começam a gritar, exigindo um relatório da sua atiradora caída. Começo a saltar, de prateleiras em prateleiras, em direção as manchas vermelhas que vejo entre os caixotes. Duas delas de pé e uma terceira amarrada a uma cadeira moderna. Um espaço aberto no meio do armazém. Uma quarta forma esparramada no chão, caída mais para o lado, imóvel.
Caio sobre um deles como uma tonelada de tijolos, batendo a cabeça dele contra o chão antes que soubesse o que está acontecendo. Ele luta, frenética e desesperadamente, aplico uma rasteira e esmago seu rosto no chão de concreto novamente. Ele se acalma.
Uma faca em minha garganta. “É melhor rezar para que ele não esteja morto”, a outra sussurra no meu ouvido. A faca faísca e sibila com algum tipo de energia; nada que eu deseje testar contra minha couraça.
Guiados pela faca crepitante, eu me levanto. “Ele vai ter uma dor de cabeça amanhã”, eu digo a ela. “Já, sua amiga com a arma nas prateleiras ... não acho que vai sair dessa.”
O Transgressor cospe uma maldição e está prestes a lança-la em mim quando o anúncio estridente do disparo da arma de Konrad invade o armazém. O corpo da mulher estremece e perde o equilíbrio, eu me viro, tirando a faca da mão dela. Mais dois golpes e ela está no chão com o meu pé em seu pescoço.
Konrad cruza para o espaço aberto, arma apontada e preparada, e verifica o pulso de Parker. “Vivo”.
Chris, que está com perda de sangue e o pescoço machucado, indica com sua cabeça em direção a uma pequena pilha de caixas perto da porta de carga. Uma delas foi forçada, possivelmente com um pé de cabra, revelando nove globos de vidro idênticos, cheios de uma água com um brilho suave. “Encontrei a carga roubada”.
“Águas curativas recuperadas a partir do Nodo que o seu pessoal pegou de nós”, a mulher resmunga sob meu pé. “Destinadas ao nosso ambulatório no centro da cidade. Estamos apenas tentando ajudar as pessoas, vocês psicopatas não conseguem ver isso?”.
Pressiono a garganta da mulher. “E quando você não estiver aqui para administrar o tratamento, querida? E depois? Quando eles se entupirem de unguentos, queimarem incenso, beberem a água irradiada... isso vai ajudá-los? Ou isso irá apenas torná-los mais doentes? As besteiras supersticiosas que você trafica não é medicina”.
Ela me encara com ferocidade. “Eu tenho o direito de acreditar na minha forma de fazer as coisas”.
“Mesmo o seu direito de acreditar compromete a saúde das pessoas ao seu redor, querida. É quando entro em cena” Com isso, eu pressiono sua traquéia; alguns momentos depois, ela está inconsciente. E não paro de sufocar a vil Transgressora, só olho para o rosto amolecido, e penso em todas as crianças que ela está “tratando”.
“Talley”, Konrad diz suavemente. Eu volto daquele lugar escuro, solto a charlatona, e volto-me para os outros: Chris, agora de pé e esfregando os pulsos; Parker com o braço por cima do ombro de Konrad, para se firmar. “Tudo bem, vamos limpar este lugar”.
“Com muito prazer”.
. . .
Minha esposa está no sofá quando chego em casa, sua enorme barriga grávida mantém-a ali. Mas me dá um sorriso e faz um gesto para me curvar e beijá-la. “Como foi seu dia?”.
Me aconchego ao lado dela, afundando nas almofadas. “Hoje eu recrutei um genocida, fiz um acordo com um monstro, e... venci uma discussão com alguém que eu tinha uma diferença filosófica”.
Ela fala preocupada e compreensivamente. “Sim, eu notei que não foi para o lab hoje”.
“Lab?” Eu bufo. “O que é um lab?”.
1- Lab, termo informal para "laborarório"
2- Íntrons, sequências intervenientes ou IVS(do inglês "intervening sequence") são seções de DNA de um gene que não codificam qualquer parte da proteína produzida pelo gene.
3- Quitina, parte integrante do exoesqueleto de artrópodes (insetos e crustáceos). Devido a sua presença o processo de crescimento destes animais é descontínuo.
2- Íntrons, sequências intervenientes ou IVS(do inglês "intervening sequence") são seções de DNA de um gene que não codificam qualquer parte da proteína produzida pelo gene.
3- Quitina, parte integrante do exoesqueleto de artrópodes (insetos e crustáceos). Devido a sua presença o processo de crescimento destes animais é descontínuo.
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