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PRÓLOGO: MORTALIS VITIUM
Eu odiava esse lorde com todo o meu ser. Tão arrogante. Tão correto. Que desperdício de título de nobreza. Ele era o governante da região, um barão, tal qual o pai, antes dele. Se esperava que tamanha linhagem iria produzir pureza. Em vez disso, sob a influência do Cristianismo, essa maldição lançada sobre nós por Roma, ele usou seu poder para oprimir-nos. Desta feita, ocultamos nossas verdadeiras crenças, fingindo orar à sua centena de santos durante o dia, mas lembrando-nos da lua à noite.
Sua religião ainda não havia ganhado força plena. Salvo nossas práticas secretas, havia um na vila que estivera entre nós há poucos anos. Um homem de verdadeiro poder. Um mago do continente, alguém que mergulhou na sabedoria esquecida e no conhecimento e podia dobrar o mundo à sua vontade. Ele alegou ser membro de uma ordem antiga, cujas raízes remontavam ao lendário Egito, no extremo sul. Ele fascinava-me.
Eu o observei em suas jornadas, recolhendo plantas e minerais para a sua alquimia. Essas, ele levou de volta ao antigo forte que agora habitava, abandonado há muito tempo pelos romanos e evitado pelos nativos. Parecia contente em viver num lugar que, por muito tempo, pensou-se ser assombrado.
Finalmente, criei coragem para aproximar-me, e implorei que permitisse servi-lo da maneira que possível fosse. Eu estava ansioso para testemunhar seus segredos, vislumbrar como que com palavras sussurradas e gestos ritualísticos ele transmutava o mundo aos seus muitos caprichos. Ele bufou e mandou-me ir para casa, dizendo que eu era velho demais para aprender. "Um homem de 20 anos? Velho demais para reaprender. Vá embora!"
Continuei a retornar ali. Então, certo dia, ele perambulava distante em busca por materiais. Eu o segui, observando-o por entre as árvores. A noite caiu e ele, sozinho, dirigiu-se até a estrada, apoiando-se pesadamente em seu cajado.
Bandoleiros apareceram. O mago falou uma palavra estranha em tom grave que parecia não ser a sua, e três deles fugiram. Um, porém, permaneceu. Este levantou sua espada para desferir seu ataque, mas o golpeei primeiro. Minha clava rachou seu crânio e o deixou caído na estrada lamacenta. Somente então que Fornax reconheceu o meu valor. Ele assentiu com a cabeça e empurrou-me pelo ombro, puxando-me consigo enquanto apressava-se para chegar em casa. Daquele momento em diante o servi, como guarda-costas e coletor de ervas, quando ele estava cansado demais para buscá-las. Aprendi muito com essas buscas, e o observando, porém, eu ainda ansiava saber mais. Embora suas maneiras fossem rudes e ainda se recusasse a partilhar plenamente seus conhecimentos comigo, cheguei a amá-lo como um avô.
E por isso não pude tolerar o que esse insignificante e orgulhoso lorde pedia-lhe. Lorde Selwyn veio com sua comitiva de guardas e seu seboso senescal, reivindicando oferecer seus cumprimentos ao grande Fornax, cuja lenda haviam ouvido mesmo aqui, no norte da Inglaterra, mas o que queriam realmente era o seu poder. O lorde, ao que parecia, tivera uma visão Divina. Ele estava prestes a partir para a Terra Santa para conquistar Jerusalém pela Cristandade. Em sua visão, empunhava uma espada, um objeto de extremo poder, capaz de partir o aço tão facilmente quanto a carne. Com tal espada, poderia cumprir seu destino e levar o Deus Único e Verdadeiro de volta à Terra Santa, expulsando os pagãos e os sarracenos.
Assim, veio à Fornax, o único homem que poderia dar-lhe tal espada. Pediu ao magus que forjasse tal objeto, afirmando que lhe pagaria uma fortuna em ouro. Seu "pedido", no entanto, foi claramente uma exigência. Com sua guarda armada à sua volta, mãos nos punhos das espadas, o preço da recusa era óbvio.
Fornax concordou, embora eu pudesse ver a cólera escondida em seus olhos. Disse ao lorde que o forjamento tomaria um mês lunar completo. Armas de tamanha majestade não são feitas por capricho e a conjuração deste feitiço custar-lhe-ia um gigantesco esforço, e até arriscar a sua saúde. Contudo, Fornax afirmou que faria tal coisa para o barão, sob a promessa de que o nobre levasse a espada até a Terra Santa e lá travasse suas batalhas.
Depois que o lorde saiu, Fornax chamou por mim. "Ah, Math, estamos amaldiçoados", disse, olhando pela janela como se visse um espectro distante no ar que só ele podia ver. "Mas isto deve ser feito. Não há volta. Vá e encontre um ferreiro, o melhor da região. Alguém que não tema forjar tal espada comigo."
"Senhor, não será fácil", disse-lhe. "Raros desses homens desejam ter qualquer envolvimento com o seu ofício. No entanto, sairei a procura e trarei comigo quem encontrar."
"Bom, bom. E há outra cuja ajuda precisaremos. Você conhece Velha Sylvie?"
"A louca? Quem não a conhece? Mas que serventia ela tem para você?"
"Seu conhecimento das ervas é superior ao meu. E ela sabe onde os veios dos minerais mais escassos da Terra encontram-se expostos, onde pedras podem ser estilhaçadas de modo que tornam-se um pó fino e potente. Vá, encontre-a, e traga-a até mim."
Assim o fiz. Fui primeiro à Johann Kent, um ferreiro dois vilarejos adiante. Eu conhecia sua família, e ele à minha. Foi a minha mãe, que era parteira, que ajudou em seu nascimento e a enquanto crescia ao ensinar a sua mãe receitas para torná-lo um jovem forte. Mamãe trouxe-o para este mundo e ensinou para a mãe dele suas receitas de como fazer um jovem crescer forte.
"Não" Johann me disse, "Não vou fazer tal coisa. Este Fornax, ele é um homem estranho, e não há como prever que males cairão sobre tal tarefa. Math, não cabe a nós fazermos espadas mágicas; este é o poder esquecido dos deuses apenas."
"Caso não o ajude, o barão irá matá-lo," disse. "Além disso, o barão prejudicará a você e a sua família, fazendo com que escondam suas devoções em nome de seu Cristo tirano. Se o barão obtiver tal espada, partirá para terras distantes e, talvez, nunca mais volte. Não seriam motivos suficientes?"
Johann meneou a cabeça, incerto, mas a ideia de livrar-nos deste nobre mesquinho era um argumento bom o suficiente para ele. Ele concordou.
Em seguida, fui à procura da Velha Sylvie. E isto levou dois dias, porque ela não era fácil de encontrar. Estava sempre por perto quando não desejamos sua companhia, mas some quando precisamos dela. Eventualmente, ouvi sua voz decrépita, em uma arremedo de cantiga, ecoando de alguma clareira distante. Aproximei-me dela lentamente.
"Sylvie? Senhora Sylvie?" Chamei. Ela parou de cantar e olhou para mim como se bandido eu fosse. "Você me conhece, Sylvie. O jovem Math, da aldeia. Você ajudou minha mãe certa vez, quando ela quase perdeu uma criança, auxiliando em um parto. Suas ervas ajudaram o bebê a agarrar-se à vida."
Ela sorriu e gargalhou, balançando sua cabeça de cabelos emaranhados de um lado para outro. "Jovem Math, jovem Math. O homem do bruxo. Por que roubar o poder dele quando você tem o seu próprio?"
"Roubar? Eu sirvo Fornax, não o roubo. E ele pede que você sirva-o também, pois ele reconhece seu saber sobre as plantas e os minerais."
Por um instante, poderia jurar que seus olhos fitaram-me com uma inteligência astuta de um tipo que eu jamais havia visto. Mas logo seu olhar desfocado voltou, como uma nuvem cobrindo o sol.
"Eu vou, eu vou, eu vou!" ela disse, dançando em um círculo. "Eu vou ajudar Fornax novamente, e ele dar-me-á um presente!"
Guiei-a até o forte, e ela e Fornax conversaram por várias horas no seu estúdio. Ele fechou a porta, e eu nada consegui ouvir através do carvalho espesso. Não conseguia imaginar que tipo de sabedoria ele encontraria nos balbuceios dela.
Pouco tempo depois, o forjamento começou. Lorde Selwyn exigiu assistir ao início dos trabalhos, e Fornax, relutantemente, concordou. Porém, trouxe consigo um sacerdote que viajara muito além da própria Terra Santa. Este homem da Igreja era a causa do desejo do barão para ir lá, nós descobrimos, reforçado agora por sua visão. O sacerdote vestia-se de forma simples, sem as ostentações comuns dentre os demais de sua ordem, mas andava pelo forte com um olhar de asco indisfarçável.
"Meu lorde, suplico-lhe", disse o sacerdote, assim que Johann começou a trabalhar o fogo na antiga forja do forte, que eu havia preparado cuidadosamente. "Esta coisa que eles farão não servirá. Se o Senhor Deus deu-lhe a visão de tal espada, com certeza significa que Ele a entregar-lhe-á por outros meios. Não é possível que acredites seriamente que este... este feiticeiro... possa proporcionar-lhe nada além do que uma arma amaldiçoada!"
"Silêncio, Padre Galen", disse o barão, olhando fascinado para as chamas. "Eu sei o que estou fazendo. Se não quiser testemunhar a criação, parta. Mas saiba que, com esta lâmina, conquistarei o mundo para Deus."
Esta última afirmação pareceu desanimar o sacerdote ainda mais, mas nada falou; ao invés disso, apenas andava lentamente, sempre observando.
Em meio ao martelar de Johann e ao falatório de Sylvie, esforcei-me para tentar distinguir as palavras que Fornax murmurava enquanto evocava seu poder. Eu podia sentir os pelos de meus braços e minha nuca ouriçarem enquanto ele carregava o próprio ar como se uma tempestade estivesse para ocorrer, e que um raio poderia atingir-me do nada a qualquer momento. Como instruído antes do forjamento, comecei a acender determinados incensos e levar tigelas contendo o pó que Fornax havia moído previamente a partir de minerais raros. Estes, ele salpicava em determinados momentos sobre o metal bruto derretido, durante a sua moldagem, fortalecendo o poder do metal com o seu próprio.
Foi um trabalho quente e demorado. Mesmo com todas as janelas abertas, logo todos estavam banhados em suor. Eventualmente, o barão partiu, e seu sacerdote o acompanhou. Seu senescal, porém, ficou para assistir atentamente a todo o rito.
No momento que a lua cheia subiu naquela noite, Johann extinguiu o fogo da lâmina em um barril d'água. Vapor eclodiu, mas logo se dispersou. A lâmina era a melhor que já vi. Trabalhados em seu comprimento estavam minúsculos hieróglifos e marcas de poder. Estes não haviam sido gravados por Johann, mas, aparentemente, surgiram no metal a cada aplicação de pó e entoações de Fornax.
Depois que Johann conectou a empunhadura e o pomo, e envolveu o punho com tiras, ele ergueu-a e sorriu. "Nunca fiz uma espada tão perfeitamente equilibrada", disse. "É uma pena enviá-la a tal missão."
O senescal olhou-o ameaçadoramente e estendeu a mão. "Dê-me isto, que entregarei ao nosso lorde."
"Não está terminado," disse Fornax, pegando a espada e guardando-a na bainha que eu tinha feito mais cedo. "Tenho outra tarefa para realizar antes. Sozinho." Vestiu seu manto, pegou seu cajado e saiu pela porta, seguindo por um caminho estreito e sinuoso pela floresta.
O senescal preparava-se para segui-lo, mas o mandei ficar, dizendo-lhe que a tarefa deveria ser concluída em total privacidade. Me olhou com malgrado e partiu, dirigindo-se à cidade, longe da floresta. No entanto, eu fiquei preocupado e segui a trilha de Fornax na floresta. Logo, ouvi alguém me seguindo. Escondido nas sombras à beira do caminho, observei dois homens em capas negras passando: o barão e seu senescal. Eles temiam que Fornax os traísse? Fui me escondendo de árvore em árvore para descobrir seus propósitos.
Logo o caminho abriu-se em uma clareira, com total visão da lua. Os dois homens pararam e esconderam-se nos arbustos, enquanto observaram algo na clareira.
Fornax havia colocado a espada sobre uma rocha plana, e agora murmurava sobre ela. A luz do luar cintilou… e subitamente começou a brilhar. Um raio resplandecente, tão brilhante que eu não podia olhar diretamente para ele, disparou diretamente da lua para a espada. Em um momento, acabou. Vozes começaram a ser ouvidas na clareira e, logo, eu pude ver movimentos no ar. Pequenos seres alados dançavam na brisa e flutuavam sobre a espada, sobre a lâmina nua, suas risadas tilintando como sinos. Pensei ter ouvido a voz de Sylvie a tagarelar dentre eles, mas não pude vê-la em parte alguma.
O senescal rapidamente recuperou-se da cena horrorizante, pegou a lâmina caída do chão ignorando as cinzas negras que dela esvoaçavam. Correu pelo caminho por onde viera e logo desapareceu de vista.
Corri para Fornax e o ajudei a ficar de pé. "Mesmo após gastar tanto de si na forja, você ainda tinha poder para incinerá-lo!"
"Não", Fornax disse, olhando ao redor da clareira. "Aquilo não foi eu. Há outro magus perto."
Nós dois o vimos, então, enquanto caminhava lentamente de seu esconderijo dentre as árvores. Padre Galen olhou para nós, as lágrimas caindo em sua face. "Eu não podia deixá-lo cometer tamanha perfídia. Ele… ele era inadequado para carregar a bandeira de Deus nas Cruzadas. Que o Senhor perdoe-me pelos meus atos!"
"Ele vai, ou não," eu disse, "Mas nenhum de nós deve demorar aqui. O senescal voltará com mais homens, para matar-nos."
"Só enquanto puder resistir à maldição da espada", disse Fornax. "Mas espero que isso demore. Temos que ir agora."
"Maldição?" Galen disse. "Então, você planejava o mal com aquela espada!"
"Mal?" Fornax falou. "De forma alguma. Encantei-a de modo que quem a empunhe recebesse dez vezes aquilo que proporciona aos outros. Se for empunhada com justiça, então esta será a sua recompensa. Se for empunhada com raiva ou ganância, ira e pobreza serão os créditos ao seu portador. Assim, seu nome é Mortalis Vitium, o 'Vício Mortal".
Galen não respondeu, apenas assentiu com a cabeça.
"É melhor você vir conosco," eu disse, embora odiasse ter dito. "Ele certamente o culpará por isso."
"Sim," Fornax falou. "Certamente há motivo para nós quatro nos reunirmos aqui?" Me questionava a respeito de suas palavras, pois apenas contei três de nós.
"Eu… Sim, eu irei," Galen disse. "Minhas viagens têm sido longas até agora, e longas serão daqui em diante. Julguei você erroneamente, e desejo reparar isto."
Fornax assentiu com a cabeça e depois gritou: "Sylvie? Trouxe minhas coisas?"
Sylvie veio dançando por entre as árvores, guiando um pônei cheio de bolsas de viagem. "Eu trouxe, eu trouxe, eu trouxe. Winnie levará as coisas para você, ela vai. Agradeça-a gentilmente, ok?"
Fornax sorriu e balançou sua cabeça. "Obrigado, nobre montaria, por levar os objetos de valor do meu ofício." Ele olhou para nós. "Então. Devemos ir? Você conhece esse bosque melhor, Sylvie. Poderia mostrar o caminho?
"Sim, sim, sim!", ela disse, dando uma volta e depois dirigindo-se para uma pequena trilha, do outro lado da clareira de onde nós entramos. "Por montes e vales, às festas com as gentis bestas. É o nosso destino!"
Fornax empurrou-me pelo ombro, pois fiquei parado, boquiaberto com a cantoria de Sylvie. Ela claramente era muito mais do que eu suspeitava. Fornax, contudo, sabia disto o tempo todo. Novamente, admirava sua sabedoria e sabia o porquê de querer aprendê-la. Meus próprios costumes eram fortes, sempre os praticaria, e um dia iria passá-los ao meu filho ou filha. Mas, eu também desejava conhecer mais dos segredos de Fornax, pois sempre surpreendiam-me.
Fornax guiou-me pelo caminho seguindo as risadas soluçantes de Sylvie, enquanto Galen vinha logo atrás de nós.
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